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A difícil relação com a comida

Apesar de os transtornos alimentares se manifestarem há séculos em nossa sociedade, os casos de anorexia e bulimia explodiram na última década, e acometem 2% da população mundial. No Brasil, os dados são ainda mais alarmantes: 4,6% das pessoas sofrem com os transtornos, de acordo com Joana Vilhena Novaes, psicanalista e professora na PUC-Rio.


As estatísticas também indicam uma mudança de perfil: há algum tempo, os transtornos eram típicos de mulheres jovens de classe média ou alta. Atualmente, os transtornos se democratizaram, atingindo homens, pessoas mais velhas e moradores da periferia. O que está por trás desse fenômeno? São várias as possibilidades mas, aqui, me concentrarei em como nossos hábitos alimentares estão sendo transformados e dissolvidos diante de um fluxo de vida diferente: intenso, pautado por excessos alimentares e pela falta de conexão com o que ingerimos.


Como comemos hoje

Nossa relação com a comida nunca foi tão ruim: vivemos num mundo com índices alarmantes de sobrepeso e obesidade - mais de 50% dos brasileiros estão com quilos a mais, por exemplo. Ao mesmo tempo, há a cobrança pelo corpo perfeito e a pressão social pela magreza. É um mundo de abundância e excessos que coexistem e dificultam a percepção do que é saudável e do que é patológico.


Picnic, 1989. Botero.


Some-se a isso certo desprezo coletivo pelas refeições: elas são mais rápidas, mais curtas e mais impessoais. Comemos olhando para a tela do celular ou computador. Os pratos já aparecem prontos e são entregues pelo motoboy. E, no supermercado, basta comprar um produto congelado e colocar no micro-ondas à noite. Vários produtos têm apelo comercial claro: indicam que são "rápidos", "fáceis", "prontos", "deliciosos" - como se alimentar-se bem fosse fácil e rápido - e sem a necessidade de avaliar informações nutricionais nas embalagens. Nos desconectamos com a alimentação de forma geral. Não sabemos como os alimentos são preparados e quais os riscos que trazem à nossa saúde (hipertensão, colesterol alto, diabetes, etc.).


Ainda assim, por que só algumas pessoas desenvolvem transtornos alimentares? Fatores genéticos, questões familiares e psicológicas influenciam os quadros de bulimia e anorexia. Indivíduos cujos pais são muito rígidos e preocupados com a aparência podem desenvolver quadros de transtorno alimentar.


Por isso é tão prestar atenção em como encaramos os momentos à mesa e buscar a ajuda de um profissional quando necessário. Para os que já sofrem de um transtorno alimentar, o tratamento deve ocorrer de forma multidisciplinar: médicos, psicólogos e nutricionistas ajudam o paciente a apaziguar e reverter os distúrbios.


Comer bem não é necessariamente caro nem difícil. O alimento é combustível para o organismo e, quando consumido com consciência e tem qualidade, traz melhorias de vida significativas. A exigência pelo corpo perfeito e a preocupação exagerada com o valor nutricional dos alimentos, classificando-os com base nisso em "bons" ou "maus"nos afasta da possibilidade de uma dieta rica e que integre diversos grupos alimentares. Vale lembrar que a cada momento, surge um vilão: o glúten, o ovo, a lactose, etc. A verdade é que uma alimentação equilibrada é a chave para uma vida com mais saúde - e que permite algumas regalias à mesa de vez em quando. Saúde é mais do que categorizar e separar alimentos: envolve corpo, comida e relação com os outros.


Se você sofre de algum transtorno alimentar, busque ajuda especializada de médico, psicólogo e nutricionista.


Alguns transtornos comuns e seus desdobramentos


Anorexia – condição mental com a mais alta taxa de mortalidade, pois provoca uma perda de peso muito rápida. Os pacientes começam a restringir o consumo de alimentos que eles consideram muito calóricos e esses cortes ficam cada vez maiores. Ao mesmo tempo, distorcem a própria imagem corporal e continuam a achar que estão gordos.


Bulimia – ao contrário do que se pensa, os acometidos por ela não são magérrimos. Muitos ficam constantemente acima do peso e se incomodam bastante com esse fato. “Na bulimia, há dois momentos: primeiro, um exagero no consumo de determinados produtos. Na sequencia, o sujeito se sente culpado por ter ingerido tudo aquilo e encontra alguma maneira de expurgar aquelas calorias”, explica a médica Fatima Vasconcellos, diretora da Associação Brasileira de Psiquiatria. O método mais utilizado para eliminar esse excesso costuma ser a indução do vômito. Mas existem outras maneiras de compensação: tomar remédios, fazer uso de laxativos e diuréticos. Essas acoes geralmente ocorrem sem que os familiares fiquem sabendo e causam sérios danos à saúde da pessoa.


Compulsão - a pessoa devora uma quantidade enorme de comida - de 4 mil a 15 mil calorias em poucos minutos (a média recomendada para um adulto saudável é de 2 000 calorias por dia). Aqui, não acontece nenhuma tentativa de eliminar os alimentos, como na bulimia. Esses ataques súbitos de gulodice são motivados por filmes emocionais, como ansiedade e estresse. Este é um problema grave de saúde, pois os portadores desenvolvem obesidade grave. É importante diferenciar o transtorno de uma escapada na churrascaria ou na pizzaria.


TARE - transtorno alimentar restritivo evitativo. É o quadro típico de crianças que se recusam a comer um grupo alimentar específico por motivos que vão da aparência ao odor, textura, temperatura e paladar. Há quem não experimente nada que não seja amarelo, outros fogem de purês ou papas e um terceiro grupo evita verduras e legumes. Claro que todo mundo tem suas preferências nos primeiros anos de vida, mas deve-se ligar um sinal de alerta quando alimentos ricos em nutrientes não são consumidos - porque isso impacta leva a déficits no desenvolvimento. Caso: jovem britânico de 17 anos acometido por Tare perdeu a visão porque só se alimentava de batata frita e pão branco. A ausência de vitaminas e minerais em sua dieta foi tão grave que lesou o nervo óptico, responsável por captar e transmitir estímulos de luz do ambiente ao cérebro.


Ruminação - o sujeito regurgita um pouco do que comeu na ultima refeição e mastiga novamente. Parte dos portadores cospe o conteúdo, enquanto outra parcela engole uma segunda vez. Esse processo se repete praticamente todos os dias e não está relacionado a nenhuma condição médica, como o refluxo gastroesofágico. A ruminação é disfarçada por meio de tosse e outras táticas. As consequências ao organismo são diversas: a ida constante de ácido estomacal para o esôfago, a garganta e a cavidade bucal provoca úlceras, mau hálito e cáries. Muitos sofrem perda de peso rápida e desenvolvem outros incômodos, como náuseas, constipação ou diarreia.


Pica - em latim, é o nome de um pássaro comum em parte na Europa. Os sujeitos com essa síndrome ingerem itens que não são considerados alimentos de verdade, como moedas, terra, argila, carvão, tecidos… Ou engolem ingredientes sem nenhum preparo, como farinhas e batatas cruas. É normal que as crianças levem objetos à boca, mas vira um problema quando o problema persiste por 3 meses ou mais.


Ortorexia (gr. orthos = correto; orexis = apetite) - ainda não é um transtorno alimentar reconhecido por toda a comunidade científica. Quadro descrito pelo médico americano Steven Bratman, que descreveu casos de mulheres de classes sociais mais abastadas, bem como em pessoas com traços de perfeccionismo e que se cobram muito. A questão não está nas calorias de cada prato, mas na pureza dos produtos. Isolamento social de festas e confraternizações - o indivíduo só come aquilo que é preparado por ele.


Vigorexia - não é um transtorno alimentar clássico, mas uma dismorfia corporal que tem ligação com as fobias. A obsessão está na ideia de um corpo perfeito, com músculos fortes e torneados. Comum em jovens que se submetem a rotinas de treino intensivas. Em paralelo, a neura com a comida: só comem tipos específicos de alimentos (frango e batata doce) ou acham que suplementos proteicos são suficientes para se manterem de pé. Há ainda o grupo que aposta em anabolizantes e outras substâncias proibidas para alcançar o "corpo dos sonhos", pois nunca estão satisfeitos com o corpo que têm.


Diabulimia - ainda não é oficialmente um transtorno alimentar. É a junção de diabetes com bulimia. Diabéticos apresentam falha na insulina, um hormônio secretado pelo pâncreas. Por uma série de motivos, s substância não consegue mais fazer a glicose virar combustível para as células. Por isso, o açúcar sobre na circulação. Para equilibrar a circulação, alguns pacientes precisam aplicar todos os dias doses de insulina, mas quem tem diabulimia deixa de tomar de propósito o medicamento com o objetivo de perder peso. Essa decisão, no entanto, é muito arriscada: o desbalanço nas taxas de açúcar traz graves consequências, como hipoglicemias e comprometimento nos rins, nos olhos e coração.


Drunkorexia - divulgado pela primeira vez em 2018, esse transtorno já foi declarado um problema de saúde pública na Austrália. Em inglês, "drunk" significa bêbado. Esse transtorno indica a substituição da comida por bebidas como uma maneira de reduzir o apetite e, assim, emagrecer. O álcool tem sua importância no transtorno: ele aplaca a ansiedade e o nervosismo, deixando o sujeito inebriado e sem focar em suas preocupações. O abuso, no entanto, leva à dependência química, à falta crônica de nutrientes importantes obtidos por meio de dieta convencional e provoca lesões no fígado.


Fatorexia - basicamente o oposto da anorexia. O indivíduo não se enxerga gordo, mesmo com todas as mudanças de tamanho de roupas e medidas corporais. Além disso, insiste em hábitos nocivos à saúde e não vê motivos para cuidar da saúde.


Pregorexia - o 'preg' vem de 'pregnancy', ou gravidez. É um transtorno alimentar que ocorre ao longo dos nove meses de gestação. Pode ser anorexia, bulimia, compulsão alimentar, ortorexia… Muitas mulheres, preocupadas com o aumento de peso nessa época, costumam cair em armadilhas, como dietas restritivas, indução de vômitos ou atividades esportivas intensas. A prática pode causar problemas sérios, como aborto ou problemas de desenvolvimento fetal. O acompanhamento de médico, psicólogo e nutricionista é crucial neste período.




Fonte: BIERNARTH, André. Transforme sua relação com a comida. Saúde. n. 450, dez 2019. p. 22-31.

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