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  • Foto do escritorDébora Palma

Uma Confissão, de Liev Tolstoi

O livro Uma Confissão fio escrito em 1879, um ano que, a priori, poderia ser considerado um bom ano na vida do autor: ele estava casado, tinha filhos, pertencia à elite russa da época e seus escritos Guerra e Paz (década de 1860) e Anna Karenina (década de 1870) lhe trouxeram prestígio e fama. A despeito de tudo isso, ou exatamente por isso, lhe vieram ideias insistentes de suicídio ao questionar o sentido da vida e da morte. O livro revelará os pensamentos do autor rumo à descoberta de uma resposta que fosse satisfatória para responder às suas questões ou, pelo menos, mitigar as razões que o empurravam para o fim de sua vida.

O autor Liev Tolstoi, sentado em um banco e vestido de preto
Cá está o autor: Liev Tolstoi, sobre quem falaremos neste post. Sobre o que ele estaria pensando quando tiraram esta foto?

O livro volta-se, em primeiro lugar, para a questão da fé: como ela se forma, como ela se perde, de onde ela vem. Suas investigações entram em choque com dogmas, preceitos e costumes sobretudo da Igreja Ortodoxa greco-russa, mas também, em menor escala, de outras igrejas e crenças. Por isso, o livro foi barrado pela censura. Suas cópias impressas circulavam de maneira clandestina.


A experiência do autor é relatada de forma direta, ao examinar as manifestações das pessoas - e das instituições à sua volta - em forma de parábolas, pequenas histórias contadas de forma a ilustrar seus problemas e inquietações. Por isso, esta é uma leitura bastante fluida e agradável - boa para romper com o estereótipo de que livros do século XIX de autores russos são muito difíceis de serem digeridos. Com alguma paciência, a leitura pode ser tranquila, sim 🤓. Este livro é uma boa oportunidade para se aproximar da vida do autor, pois é cheia de detalhes sobre suas ideias - desde quando era criança até sua idade adulta.


Teria Tolstoi, então, encontrado a resposta para a pergunta sobre o sentido da vida? Certo é que não se suicidou, tendo vivido até os 82 anos. Por isso, acredito que, muito mais do que respostas, ele estava buscando sentido no caminho que fez rumo ao descobrimento pessoal e subjetivo. Com tamanho espírito investigativo e científico, o autor não poderia deixar de se frustrar com a falta de pistas ou robustez do pensamento e de ideias quando indagava a razão de ser do que existia.


Este livro está dividido em dezesseis capítulos, sobre os quais farei uma síntese dos principais conceitos de cada um deles.

I. Tolstoi rompe com doutrina religiosa, adotada por confiança e sustentada por pressão externa. Suas experiências de vida e seus conhecimentos adquiridos fazem com que ele questione os dogmas religiosos. Na juventude, desenvolve a ideia do autoaperfeiçoamento como meta a ser cumprida; o autoaperfeiçoamento deveria ser moral e geral, e cujo objetivo seria não ser melhor aos olhos de Deus, mas aos olhos de outras pessoas. Sua aspiração é ser mais rico, mais famoso e mais importante do que os outros, alcançando lugar de destaque social.


II. Percebe que a sociedade valorizava e incentivava muito mais as “paixões sórdidas”, e que os “moralmente bons” eram motivo de zombaria. Faz a crítica ao modo como o trabalho era realizado em sua juventude, e em como os escritores, poetas e professores estavam incumbidos da missão moral de produzir quantidades enormes de “conhecimentos”, que deveriam ser então entregues às massas.


III. Na Europa, predominava a fé no aperfeiçoamento e na ideia do “progresso”, o qual o autor considera uma superstição. Afinal, nenhuma teoria da racionalidade e do progresso era capaz de justificar ações terríveis que ocorriam na sociedade (como a tenebrosa exibição de pena de morte pública). O progresso é uma superstição generalizada com a qual as pessoas se escondem de si mesmas com a própria incompreensão da vida. O que é bom? O que é necessário? A falta de resposta para essas perguntas levou Tolstoi a uma crise existencial absoluta. Tolstoi adoece, porque não encontrava sentido naquilo que fazia: “Por que faço o que faço e qual o sentido do meu trabalho? O que ensinar aos outros?”. As perguntas “o que fazer” e “para que fazer” deveriam ser respondidas, para que não culminassem com sua morte. Este é um dos principais marcos neste livro que marca a busca profunda do autor para responder às perguntas.


IV. A vida de Tolstoi parou, porque não existiam desejos cuja satisfação considerasse razoável. Desejar e obter (ou não) o que foi desejado não levava a nada; nada havia sentido e também não havia sentido desejar. Ele chega à beira de um abismo emocional, e não havia nada além da ruína, ao mesmo tempo em que é impossível voltar, é impossível fechar os olhos e deixar de ver que não há nada à frente, a não ser a ilusão da vida, da felicidade, os sofrimentos verdadeiros e a morte verdadeira, a aniquilação completa. Tolstoi desejava se afastar da vida, e a ideia do suicídio foi tão natural quanto a ideia sobre o aperfeiçoamento da vida. Não sabia mais o que queria da vida: ao mesmo tempo que esperava dela se livrar, ainda dela esperava alguma coisa. E foi isso que lhe permitiu continuar buscando respostas.

Só conseguimos viver quando estamos embriagados pela vida; quando ficamos sóbrios, é impossível não ver que tudo isso é apenas ilusão, e uma ilusão tola! Na verdade, não há nada aqui de engraçado nem de espirituoso, é apenas cruel e absurdo (p. 38)

V. Será que a condição do desespero não é inerente às pessoas? Quanto mais buscava, mais chegava à conclusão: a ausência de sentido da vida é o único saber indubitável que o homem pode alcançar. Surgem mais perguntas: "O que vai ser de toda a minha vida? Do meu trabalho? Das minhas conquistas? Haverá algum sentido que não seria aniquilado pela morte?"


VI. Qual o sentido da vida? O fato de sermos uma partícula no infinito não dá sentido à vida, e destrói qualquer possibilidade de sentido.

Tudo é vaidade. Feliz de quem não nasceu, a morte é melhor que a vida; é preciso livrar-se da vida (p. 63)

VII. Não encontrando esclarecimento no saber, vai buscar respostas com as pessoas à sua volta: como viviam e se relacionavam com a questão que o levou ao desespero? Pelo que ele pôde perceber, existiam 4 saídas possíveis:

  1. Ignorância - não sabiam e não entendiam que a vida é cruel e absurda; não veem o dragão que as aguarda nem os ratos que roem os galhos nos quais se pendura, mas lambem as gotas de mel só por um tempo, porque alguma coisa as faz voltar a atenção para o dragão que as aguarda e para os ratos que roem, e então é o fim de suas lambidas.

  2. Saída epicurista - conhecendo o desespero da vida, são pessoas que desfrutam dela enquanto vivem, e da melhor forma possível. Esta saída é adotada pela maioria das pessoas, que são geralmente aquelas que vivem em um estado de torpor moral e de imaginação, que as afasta do pensamento inquietante (a inevitabilidade da doença, do sofrimento e da morte que, um dia, destruirá todo o prazer que conhecemos).

  3. Saída da força e da energia - uma vez compreendido que a vida é apenas crueldade e aniquilação, aniquilamos a vida. Acabamos com a brincadeira pérfida que é a vida.

  4. Saída da fraqueza - compreende-se que a vida é absurda e cruel, mas continuam a se arrastar pela vida, sabendo de antemão que ela não dará em nada. Sabem que morrer é melhor que viver, mas não têm forças de agir de modo racional, colocando fim à ilusão. Tolstoi estava neste grupo.

A questão que o intrigava, no entanto, era a seguinte: a razão é criadora da vida. Sem razão não há vida. Como pode a razão negar a vida, se é sua criadora? A razão é fruto da vida, e essa razão nega a própria vida. Como podia ser isso? Ora, a humanidade fez a vida ao longo milhões de anos, e seu legado é o presente, é o que vivemos agora; são os sistemas, as linguagens, os costumes. Se somos fruto delas, elas não são “bobagens”. Se a religião era um legado da humanidade, não poderia ser desprezado.


VIII. Tolstoi se reconhece humilde diante do poder da humanidade, que foi paulatinamente sendo construído através dos séculos. Que sentido dão e deram os melhores que viveram e vivem no mundo? Se quero entender o sentido da vida, preciso buscar esse sentido não naqueles que o perderam e querem se matar, mas nos milhões de pessoas que viveram no passado e vivem hoje, que carregam sobre si a sua e a nossa vida. Volta-se, então, para o saber racional, que não oferece sentido a vida, ele exclui a vida. O saber racional (na pessoa dos sábios e dos cultos) nega o sentido da vida, enquanto a enorme humanidade reconhece esse sentido num saber irracional - a fé. Que dilema! A razão era a negação da vida, e a fé era a negação da razão (que é ainda pior do que negar a vida). E agora?!


IX. A racionalidade da fé era a única que poderia oferecer à humanidade as respostas para a questão da vida e sobre as possibilidades de viver.

Quaisquer que sejam a respostas da fé, oferecidas a quem quer que seja, toda resposta da fé dá um sentido infinito à existência finita do homem - um sentido que não é destruído pelos sofrimentos, pelas privações e pela morte. Isso significa que, numa fé, é possível acontecer o sentido e a possibilidade da vida (p. 79)

Os conceitos de infinitude de Deus, do espírito divino, de um elo entre as ações das pessoas e Deus, o conceito de bem e de mal são conceitos elaborados na vastidão histórica da vida humana, oculta de nossos olhos; são conceitos sem os quais não existiria a vida. A teoria da humanidade está nas respostas fornecidas pela fé.


X. Agora, estava pronto para aceitar qualquer fé, contanto que não exigisse uma negação direta da razão. Indagou então às pessoas: em que acreditavam e como encontravam o sentido da vida?

Apesar disso, não conseguiu aceitar a fé daquelas pessoas, porque elas não utilizavam a fé para responder às questões da vida, mas tinham outros propósitos para a fé. Além disso, os comportamentos daquelas pessoas não se coadunavam com os princípios que elas protestavam em suas crenças, além de viverem exatamente como os não crentes - temiam privações, temiam o sofrimento e a morte e viviam para satisfazer luxúrias. A fé dessas pessoas era apenas um consolo epicurista.

Já as pessoas pobres e a classe trabalhadora aceitavam todos os revezes da vida sem perplexidade, e para elas tudo era bom; eram pessoas que se aproximavam da morte com alegria. Seus costumes diferiam dos costumes das classes dominantes. Apesar disso, sabiam do sentido da vida e da morte, e tranquilamente trabalhavam e suportavam as privações. A convivência com as pessoas pobres fez com que Tolstoi olhasse para seu círculo mais próximo, de pessoas ricas e instruídas, com desdém.


XI. Tolstoi questiona o que o teria "desencaminhado" em relação a fé, e chega a uma resposta: sua existência epicurista e suas opiniões generalistas sobre o mundo, que diziam mais a respeito de si do que da vida em geral; e que se a vida lhe era insuportável e difícil, a mesma regra não se aplicava necessariamente às outras pessoas.


XII. Tolstoi busca então viver a vida autêntica, e não a vida de um parasita. Neste momento, vê a existência de Deus e busca se conectar com ele para evitar o desamparo; como não consegue essa conexão, a pulsão pelo suicídio retorna. Vivia naquele momento sentimentos como alegria e animação, ao mesmo tempo em que desespero pela própria impossibilidade da vida. Só se sentia vivo quando acreditava em Deus - que lhe transmitia o sentido da vida.


XIII. Teoriza que as pessoas vêm ao mundo pela vontade de Deus; e que Deus fez o homem de tal modo que ele pode perder sua alma ou salvá-la. Para que o homem tenha sua alma salva, é preciso viver de acordo com Deus por meio da renúncia, resignação, resiliência e misericórdia. Percebe que sua relação com a fé foi muito variada ao longo do tempo, e que, se no princípio as regras religiosas eram avaliadas como sem sentido, agora tinham sentido porque ele as havia compreendido. A religião era um caminho que lhe permitia buscar a comunhão com seus antepassados e com a humanidade. Era esse o sentido da vida, que poderia ser obtido por meio da religião.


XIV.

(…) cheguei à fé porque, formar da fé, eu não encontrei nada, rigorosamente nada, sendo destruição. Por isso, era impossível rejeitar essa fé e eu me submetia. E, em meu espírito, descobri um sentimento que me ajudou a suportar isso. Foi o sentimento de auto-humilhação e de humildade. (p. 112)

XV. É aqui que Tolstoi percebe o conflito ideológico entre diferentes religiões, e fica indignado com as posturas conflitantes - e comumente agressivas. Voltando sua atenção para o que se faz em nome da religião, horroriza-se e renuncia à Igreja Ortodoxa. Desenvolve uma nova visão sobre a religião: a doutrina destrói aquilo que busca promover, ou seja, o amor e a união. Nesse aspecto em particular, Tolstoi refletia sobre a imposição de dogmas religiosos. Para ele, se uma doutrina nega outra, em nenhuma delas se encontra a verdade única do que deve ou não ser a fé.


XVI. Por fim, Tolstoi avalia que as crenças do povo são mentiras misturadas com verdade. Mentiras e verdades provêm da tradição e do que era transmitido pela Igreja.

Não vou procurar a explicação de tudo. Sei que a explicação de tudo tem de esconder-se no infinito, como o princípio de tudo. Mas quero entender de tal forma que eu seja levado ao que é fatalmente inexplicável; quero que tudo o que é inexplicável continue assim, não porque as exigências de minha mente são erradas (são corretas e, fora delas, não posso compreender nada), mas sim porque vejo os limites de minha mente. Quero entender de tal forma que qualquer tese inexplicável se apresente para mim como uma necessidade da razão, e não como uma obrigação de crer.
Que na doutrina existe verdade disso eu não tinha dúvida; mas eu também não tinha dúvida de que nela existe mentira, e eu tenho de encontrar a verdade e a mentira, para então separar uma da outra. Foi isso que tentei fazer. (p. 123)

Todo o livro de Tolstoi retrata sua busca do sentido da vida. Teria Tolstoi escolhido continuar vivendo por ter satisfeito seu espírito por meio da pesquisa e do aprofundamento das questões humanas?



Referência: TOLSTOI, Liev Nikolayevich. Uma Confissão. São Paulo: Mundo Cristão, 2017.

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